A marchand, Van Gogh e Monet

quarta-feira, 10 de março de 2021 19:03:18 America/Sao_Paulo

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Eu já tinha 37 anos de idade –10 deles como marchand –e ainda não conhecia a França. Muito menos Paris. Muito menos o Louvre. Algo inconcebível para alguém que trabalha com arte. Um absurdo completo! Não sei explicar a razão desse atraso. Vivi na Alemanha. Conheci Portugal, Espanha, Holanda, Áustria, Itália. Mas toda vez que planejava ir a Paris, algo dava errado. Talvez eu não estivesse preparada para absorver ao máximo o que a cidade oferecia. Talvez porque eu devesse conhecer a França com um francês, como de fato aconteceu. 

O meu namorado nessa época era um chef de cozinha francês. Nossa viagem a França foi focada nos temas preferidos do casal: arte e gastronomia. Em Paris, cada dia era dedicado a um Museu: Louvre, Museu D’orsay, Pompidou, Museu Picasso, Dalí Paris, Museu do Rodin... Cada um desses museus é parada obrigatória para quem visita a cidade, trabalhando com arte ou não. Os restaurantes transitavam entre os tradicionais, da época em que meu namorado morava e trabalhava como chef em Paris, como o “Au Pied de Cochon”, e outros atuais que pesquisei com meus amigos ou clientes. No Mont Saint-Michel delirei com o melhor omelete do mundo. Ele é leve e aerado com um souflé. Dizem que o segredo são as claras batidas separadas das gemas. E os mariscos lambe-lambe como entrada todos os dias? E o mousse de chocolate como sobremesa todos os dias? Sem dúvidas a culinária também é uma arte.

Paris é um suspiro a cada esquina. Mas mais interessante ainda, ao menos para mim, foi o roteiro pela Normandia, passando por cidades e vilarejos onde grandes artistas como Monet e Van Gogh viveram –e outros tantos se inspiraram. 

No vilarejo Auvers-Sur-Oise, Van Gogh passou seus últimos 70 dias de vida. Nessa última temporada, produziu 72 pinturas, 33 desenhos e uma gravura. Auvers, portanto, é uma cidade marcada pela presença de Van Gogh.  Há 29 placas espalhadas pelo vilarejo, com imagens dos quadros que ele pintou exatamente naqueles locais. Ou seja, inspirando-se naquelas construções e paisagens, tal como puderam resistir a passagem do tempo. É emocionante ver de perto aqueles campos por onde ele vagava pintando sem parar, num ritmo frenético e talvez enlouquecedor. 

No Auberge Ravoux, conta-se que Van Gogh se hospedava por 3,5 francos a diária.

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À espera de Van Gogh- Auvers-Sur-Oise

O restaurante no andar debaixo do albergue é como em um cartão-postal antigo. Preserva a mobília e a atmosfera de um clássico café de artistas, onde os turistas são envolvidos pela boemia. Ali, eles servem os mesmos pratos que serviam na época de Van Gogh. Tinha um peixe que vinha em um recipiente enorme de cobre. Ele estava mergulhado em um caldo que parecia para conserva. Era grande. Pensei: Como vamos comer tudo isso? Meu namorado explicou que era só para pegar o que queria, depois eles levavam de volta ou seguiam com a iguaria para outra mesa. Achei estranho, mas talvez esse tipo de detalhe é que nos faz sentir estamos não só em outra cultura, mas também em outra época. Eu saboreei cada receita tentando me sentir na pele do artista. 

O quarto dele, no andar de cima, me deu um aperto no coração. Achei triste alguém viver em um pequeno quarto, de teto baixo, um pouco claustrofóbico. Me fez refletir sobre o quanto é importante o lugar onde vivemos. Sozinho, em ambiente pequeno, todo marrom, à mercê dos próprios pensamentos, pode ser perigoso. O quarto não era como o que ele pintou na conhecida obra “Quarto em Arles”. A diferença é que o quarto da pensão em Arles era colorido, com paredes azuis. Embora o piso e a disposição dos quadros na parede desalinhados passem a impressão de que estivessem caindo, transmitindo uma tensão, talvez o desespero do artista. Esse em que estávamos era bem deprê. Talvez o quarto de Arles também não fosse bonito, mas na sua pintura tudo se transformava em beleza. 

Seu irmão, o marchand Theodorus Van Gogh, faleceu seis meses depois de Van Gogh, e está enterrado ao lado do irmão, no mesmo cemitério, nesse mesmo no vilarejo. Quis visitar, é claro. Tenho uma ideia meio tola, de que quando estou ao lado do corpo de uma pessoa, mesmo que ali restem apenas ossos e cinzas, eu posso conversar com ela. E mais, posso ainda captar alguma mensagem, de alguém que tanto respeito, talvez um recado que me ajude a aprofundar minha existência. Eu poderia conversar com Van Gogh. O artista que toca minha alma como nenhum outro. Seria um papo de amigos, ou, nesse caso, de marchand e artista. 

Essa parte da viagem realmente me tocou muito. Chegamos ao cemitério pequeno, em meio aos campos coloridos onde Van Gogh vagava pintando. Não sei se é efeito psicológico, mas é incrível. Quando você vê esses campos logo os identifica com as pinturas do artista. A predominância do amarelo no capim quase dourado. O movimento do vento dando forma a vegetação, que nas telas são reproduzidas pelas pinceladas frenéticas e repetitivas. Aquela paisagem solitária faz sentir que só falta Van Gogh surgir, ali, no meio do capim alto, com seu chapéu, cavalete, tela, pincéis e tintas. 

Eu esperava ver turistas pelo cemitério por ali. Talvez fila, venda de souvenirs, pagamento de um pequena taxa para poder visitar o famoso túmulo, tudo o que seria comum no Brasil. Talvez até policiamento. também. No Brasil Os ossos de Van Gogh, afinal, correriam risco de serem roubados e vendidos em um mercado de arte paralelo.

Mas não havia ninguém no cemitério ou nas proximidades. Tive de procurar bastante pelo túmulo de Van Gogh e de seu irmão Theo, o que me causou mais expectativa e ansiedade. Não havia informação, setas, nada que indicasse o túmulo dos irmãos. Esperava talvez encontrar um jazigo que os diferenciasse dos demais mortais. Talvez flores trazidas pelos turistas fãs da história da arte. Nada. 

Andei com a cabeça mais baixa, procurando os nomes nos túmulos. Encontrei. Assim, de supetão! Senti vontade de chorar, talvez pela triste certeza da morte em si, ou  pela expectativa de encontrar o túmulo, ou ainda pela marchand que encontrava ali um artista tão importante e um outro marchand. Me emocionei pela história dos dois, por todo o talento e o sofrimento de Van Gogh e pela oportunidade de estar ali. Senti um respeito enorme. Aquele silêncio absoluto não era à toa. Era um momento sagrado. Tive de segurar o choro. 

O meu namorado, enquanto isso, tinha ido fazer xixi nos campos de Van Gogh e agora se aproximava. Para ele talvez era apenas aquilo que aqueles campos significavam. Um lugar para fazer xixi. Ele sempre dizia que eu estava “fazendo cena” quando chorava. Achava mais prático mascarar sentimentos, enquanto eu ia fundo neles, seja qual fosse o sentimento. 

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Continuando a viagem pela Normandia, nossa próxima parada foi a casa de Monet em Giverny. Existem muitas casas de pintores famosos que se tornaram museus após sua morte, mas ouso dizer que poucas nos transmitem com tanto realismo a maneira como o artista viveu e trabalhou como esta de Monet.

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          Oscar-Claude Monet foi o grande mestre do Impressionismo. Ele inventou um estilo e além de tudo produziu os cenários que queria pintar quando cultivou diversos jardins ao seu redor. 

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Jardins de Monet – Giverny (FR)

Eu tenho muitos clientes para obras de Roberto Burle Marx. Burle Marx foi um grande paisagista e reconhecido mundialmente por suas obras paisagísticas. A famosa calçada de Copacabana, para quem não sabe, também é de sua autoria. Ele deixou um excelente legado como artista plástico, com alta cotação de valores para suas obras. Mas é no paisagismo que ganhou notoriedade internacional. 

Por que estou dizendo tudo isso? Porque pensei que com Monet aconteceu o inverso. Ele é consagrado como artista plástico, mas ao passear pelos seus jardins primorosos, não se pode negar que também foi um grande paisagista.

Quando trabalho com artistas reconhecidos, é natural que eles tenham um certa idade e longos anos de carreira. O lado ruim é que tive de me acostumar a perder artistas a cada ano. Mesmo assim, é impossível não se emocionar diante de um túmulo de um artista tão importante. 

No caso de Monet, a procura pelo jazigo foi bem diferente da minha experiência em busca do túmulo de Van Gogh. Mais uma vez, estávamos sozinhos no cemitério ao lado da igreja. O cemitério não era tão pequeno como o de Van Gogh. De novo, nenhuma indicação que levasse ao ilustre jazigo. Começamos a procurar o tal túmulo e nada. Eu já via a cara de desespero do meu namorado, irritado por se ver perdido em mais um labirinto fúnebre. Na verdade, ele se irritava com qualquer coisa. Até aí, não tem tanta graça, mas conforme ele andava para lá e para cá, eu podia sentir a sua crescente frustração por não se revelar o excelente guia turístico que tinha sido até ali. 

É uma pena que não devo nem posso publicar essas fotos, porque comecei a rir sem parar em pleno cemitério, fotografando cada passo e toda a gesticulação do meu nervoso namorado. Imagine uma criança grande, já de cabelos brancos, de braços cruzados, fazendo beiço, sentado em um túmulo qualquer, frustrado por não achar o tesouro escondido. Desistimos. 

Ao sair pelo caminho da igreja, encontrei um casal e perguntei a eles, em inglês, se sabiam onde estava enterrado Monet. O casal riu e apontou para entrada do cemitério. Ali estava ele. O túmulo é da família inteira e, no meio de tantas plaquinhas com sobrenome Monet, não localizei o Claude. Mais uma vez achei bonito o fato de não haver nenhuma indicação sobre o túmulo. Ele era igual aos demais. Éramos apenas nós naquele cenário, sem nenhuma pessoa se aproveitando para vender souvenir, foto ou qualquer outra bugiganga. Foi uma lição. Independente do quanto foi importante para a história, foi um ser humano como outro mortal qualquer que estava enterrado naquele lugar.